domingo, 14 de março de 2010

Agressores não são doentes e raramente se arrependem

Identificar um violador é difícil, mas sabe-se que, na sua maioria, são jovens sem cadastro e sem antecedentes de patologias mentais

A violação sexual é o crime com mais impacto nas vítimas. É perturbador, também, porque envolve um criminoso de quem ninguém suspeita.

"É muito difícil identificar sinais que indiquem um potencial violador", dispara Maria Francisca Rebocho. Ainda assim, a autora de "Caracterização do violador português" contribui para entender quem são, afinal, estes agressores disfarçados de gente "normal".

Tem entre 30 e 35 anos. Cumpriu apenas a escolaridade primária. Trabalha em sectores como o da construção civil ou da agricultura. Abusa do consumo de álcool. Não tem relação estável, nem cadastro, nem antecedentes de doença mental.

Quantos homens cabem neste perfil? Com certeza, cabe a maioria dos reclusos portugueses condenados por violação. As conclusões correspondem à amostra (de 87 indivíduos) estudada por Maria Rebocho, psicóloga forense. Mas, neste perfil, encaixarão muitos outros homens: inocentes e culpados, lúcidos e perturbados.

Entretanto, a investigadora garante: "Um violador não é um doente". Este tipo de criminoso pode ter "mais ou menos traços de psicopatia", mas não é considerado psicopata, antes "moderadamente psicopático", explica.

Caso tenha mais sintomas de psicopatia, então pode ter outro género de características. Pode ser "um gabarolas, alguém que inflaciona o seu próprio valor, que é excessivamente simpático, que mente em várias esferas da sua vida", continua a docente do Instituto Superior da Maia.

Há mais pistas. Pode ser "alguém que não assume os seus erros, que vive de forma parasítica, à custa da mãe ou da namorada ou alguém que vai atrás do risco".

Na generalidade, criar empatia, perceber o impacto das suas acções nos outros e regular emoções não são qualidades de um agressor sexual.

Imitar as emoções dos outros

Desde há cerca de sete anos que Cristina Soeiro, psicóloga forense da Polícia Judiciária, estuda os agressores sexuais portugueses. Concluiu que se trata de um grupo muito heterogéneo, mas foi possível traçar um perfil padrão. O violador mais comum "tem uma visão negativa das mulheres e acha que os homens são mais importantes. Acredita em mitos relativos às violações e desculpabiliza a violência", descreve.

O estudo desenvolvido pela docente do Instituto Superior de Polícia Judiciária e Ciências Criminais permitiu entender que se tratam de indivíduos com baixa auto-estima, frequentemente com histórico de abuso de substâncias e descendentes de famílias desmoronadas.

Agindo muitas vezes por impulso, tratam-se de pessoas com grande dificuldade de regulação emocional. Não sabem o que é sentir e, por isso, "imitam a forma como os outros expressam as emoções", explica, por sua vez, Maria Rebocho. Actuam como camaleões.

"Ela dizia não. Mas queria dizer sim."

Se sofre de uma perturbação ao nível do controlo emocional, pode um violador arrepender-se? "É raro. Até hoje só vi um caso de arrependimento genuíno", relata Maria Rebocho. Mais frequente é a culpabilização da vítima. Os argumentos mais usados pelos agressores: "É a fantasia de todas as mulheres. Ela era muito sedutora. Ela dizia não. Mas queria dizer sim".

A psicóloga forense observou sempre um remorso "superficial e egocêntrico". Quando confrontados com o impacto da violação, a primeira perspectiva é pessoal: ficaram sem mulher, sem emprego. "Prejudicou-me muito", dizem.

Já a percepção que têm do sofrimento da vítima depende, sobretudo, do que ela for capaz de expressar no acto da violação. Só as emoções exteriorizadas contam. Se gritar, sofreu. Se não chorar, não sofreu.

Violação como demonstração de poder

A pergunta impõe-se: é possível reabilitar um agressor sexual? Poderá ele pagar pelo crime e resgatar uma vida saudável em sociedade? "Dificilmente", defende a docente do ISMAI. Mas há que considerar vários factores para falar em potencial sucesso ou fracasso.

Tratando-se de psicopatas, é praticamente impossível. "Têm muita resistência à terapia". No caso de violadores com menos traços psicopáticos e que tenham praticado o crime na sequência de um factor específico, como uma perda traumática, então, "aumentam as possibilidades de fazer terapia". O tratamento também se torna menos complicado junto de violadores que praticaram um crime isolado, agravando-se drasticamente quanto se trata de violadores em série.

A psicóloga da Polícia Judiciária acrescenta que os casos mais violentos, provocados por indivíduos com perturbações de personalidade, e os casos mais bizarros, no caso de agressores que acumulam parafilias [comportamentos sexuais desviantes], são, igualmente, de recuperação improvável. "Mas há situações em que se pode intervir ao nível das crenças sobre as mulheres e sobre a conduta", sublinha.

Perante um cenário inequívoco de recidiva do crime, a castração química surge no debate. Não é consensual. Além de "eticamente muito problemática, não resolve todas as situações", defende Maria Rebocho. Para que serve a castração química se o ímpeto de um violador não é sexual? "Muitos atacam as mulheres movidos por vingança. Outros usam a violação como a forma suprema de humilhação. Outros ainda vêem neste crime uma demonstração de poder", sublinha. Baseada no estudo de cerca de 70 indivíduos detidos por violação, Cristina Soeiro conclui, por sua vez, que há dois tipos de motivação: sexual e relativa ao poder.

Factos anormais de um casamento

A maioria dos violadores portugueses não tem uma relação estável na altura do crime. Entretanto, o caso do "violador de Telheiras" lembra que sempre haverá excepções. Henrique Sotero namorava há quase dez anos. Quase nada se sabe sobre a sua mulher.

É uma outra face deste crime. Uma outra vítima. O que acontece a uma mulher que partilhou uma vida, anos a fio, com um homem que, de repente, é "apanhado" como um agressor sexual? Como foi ele capaz de destruir tantas mulheres sem que ela tivesse sequer suspeitado? Como reage a mulher do violador?

Por norma, rejeita-o. "Ela não aceita e é frequente haver uma ruptura do casal, o desmoronar da família", afirma Maria Rebocho. Por norma. Nem sempre.

A investigadora recorda o caso de uma mulher que foi vítima de violação perpetuada por parte do marido, mais tarde condenado e preso. Ela continuou a visitá-lo na prisão. Ele dizia que eram "factos normais da vida de casados". Na realidade, há casamentos em que "as mulheres nem se apercebem que o que lhes acontece é uma violação".

E também "há casos de mulheres que dizem que enquanto o marido lhes bate ou as viola demonstra sentimentos por elas", explica a perita. Se nada fizessem "seria muito pior. São mulheres com personalidade dependente, que não suportam a ideia de estarem sozinhas".

Vítimas: que factores de risco?

Sabe-se que a maioria das vítimas (95%) são mulheres, com uma idade média de 34 anos, segundo o estudo de Maria Rebocho. Mas isto é quase tudo o que se sabe. "Não é possível traçar o perfil da vítima", atesta Carla Machado, investigadora da Universidade do Minho. O perfil atravessa vários grupos sociais. Não há um padrão.

Há, isso sim, factores de risco. "As mulheres mais perturbadas psicologicamente têm mais dificuldade em proteger-se ou em saber identificar contextos de risco. Mas não têm, necessariamente, perturbações graves", explica a psicóloga, que desenvolve o seu trabalho junto de vítimas de crimes. Também as mulheres que sofreram uma violação precocemente podem ter um trauma psicológico que as leva a não valorizar a sua segurança.

Nos casos em que a violação é continuada, ao longo de anos de relacionamento, o factor de risco poderá, então, ser a própria educação das mulheres, "a quem lhes ensina que o mais importante é satisfazer o homem, que vale mais uma má relação do que a solidão".

Depois, há circunstâncias de risco, como a frequência de lugares pouco seguros ou o consumo de álcool. "Desta forma, a vítima reduz as capacidades para se defender e até a recusa do acto sexual pode não ser totalmente clara", acrescenta Carla Machado.

Evitar circunstâncias de risco é possível. Detectar um violador? Improvável. Em matéria de prevenção, a conclusão inquietante é que, muito provavelmente, a única forma de evitar o crime faz-se, a longo prazo, culturalmente. "Na educação pelo respeito pelas mulheres, na educação para a sua autonomia, na capacidade de julgamento de situações", defende a docente.

A curto prazo, o processo de tratamento das denúncias poderia ser optimizado. Desde a queixa à polícia, passando pelos exames médico-legais, até ao confronto com o violador em tribunal. Tudo é "traumático. E quanto mais se arrastar, mais as vítimas estão, permanentemente, a activar as memórias do crime", alerta a psicóloga.

Nem todas recuperam, dizem os peritos. E se quase nada parece possível - identificar um violador, evitar a repetição do crime, prevenir -, será, ao menos, exequível acelerar o processo judicial destes casos?

Fonte: JN

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