Falta um aeroporto, faltam mais serviços públicos, falta mais comunicação, falta mais meios de transporte. A palavra falta é interminável na ilha da Brava. Os bravenses estão cansados de depender do Fogo e desejam que a sua ilha seja colocada na agenda governamental. Na reportagem que se segue, um olhar sobre uma Brava longe do século XXI.
O seu dia a dia é passado a trazer e a levar gentes. Gentes da sua terra, e que "bem di fora". A muitos lugares. A sua rotina é ouvir as conversas dos turistas que chegam anestesiados pela primeira imagem da Brava: a fotografia postal da Furna que dá as boas-vindas àqueles que estão a conhecer pela primeira vez a "ilha das Flores".
Quando os turistas teimam em não aparecer, Aguinaldo Silva transporta os habitantes das várias localidades aos seus destinos. Por entre ruelas e vielas, aconchegado pelo verde imponente de uma ilha, inquietada pelo silêncio, é nestas curtas viagens de cá para lá, de lá para cá, que "Guigui" (como também é conhecido) ouve as queixas, os lamentos, as alegrias, as tristezas, as novidades ou as promessas que nunca se cumpriram.
Aguinaldo tem orgulho de ter sido um dos primeiros bravenses a trazer uma viatura hiace para a ilha de Eugénio Tavares. Isso foi há cerca de quatro anos. Nessa altura, apenas algumas carrinhas de caixa aberta faziam o transporte de pessoas. Hoje, as carrinhas de caixa aberta continuam em maior número. Mas agora "Guigui" não é o único a conduzir um hiace. Estas, agora são cinco, muitas das vezes não têm clientes para transportar. "O que era bom para nós era o aeroporto. Ai se era. Nós estamos aqui esquecidos. Temos agora barco todos os dias, mas a travessia não é coisa fácil e leva-se uma hora para cá chegar, de uma forma desconfortável. Não há gente, não há turistas e depois não podemos viver só deste trabalho. Eu tenho outras coisas. Uma oficina de mecânica, porque se estivesse à espera de viver só do transporte não colocava comida na mesa", desabafa "Guigui", que muito se orgulha de ser o seu próprio patrão.
Com a forma de uma elipse, a ilha da Brava já foi considerada a mais bela ilha do mundo e a jóia do império colonial português. Tempos de gloria. Épocas em que a Brava era exaltada nos poemas do grande Eugénio Tavares. Porém, mudam-se os tempos mudam-se as vontades. E aquele pedaço de tranquilidade é hoje a mais inacessível, a mais escondida, a mais perdida no tempo.
Quem passeia pela praça Eugénio Tavares ou pelo largo da igreja sente que está noutra era. O sítio indicado para descansar, reflectir, relaxar, durante alguns dias, tendo como cenário o nevoeiro que aconchega as serras. Mas quem lá vive, precisa de mais: de mais meios de comunicação com as outras ilhas, por exemplo.
Sonho americano
Os jovens. Na opinião de alguns, não há trabalho disponível para eles, para outros são eles que não querem trabalhar.
Segundo a polícia local, a criminalidade aumentou, mas não em termos de assaltos. "O que há são roubos às residências. Pode-se andar a qualquer hora na Vila, que não há hipótese de ser roubado. O problema, é que algumas residências são de pessoas que vivem nos Estados Unidos e que só vêm à Brava nas férias. Então, os criminosos aproveitam para assaltar essas casas".
Os repatriados são os primeiros a arcar com as culpas. Jovens que saíram da Brava ainda crianças na busca do sonho americano, mas que por um pequeno, médio ou grande delito, cometido nos Estados Unidos, são obrigados a regressar ao local onde nasceram. Resultado: a adaptação é difícil. Deixa-se um mundo agitado para se entrar num universo onde o tempo anda devagar demais. Em alguns casos, a raiva, a frustração, dão lugar a actos ilícitos.
Alguns repatriados com quem a nossa equipa de reportagem teve a oportunidade de falar, retratam as suas vidas naquela ilha como um filme negro, sem direito a final feliz. "Para mim, é o cemitério dos vivos", afirma um deles que já está na Brava há mais de cinco anos.
"Não temos acompanhamento. Chegamos aqui e as pessoas continuam a olhar-nos como criminosos. Eu sou um filho da terra. Apesar de não me adaptar ao sistema aqui. As pessoas pela frente riem-se para ti e depois por trás tentam à força arranjar-te problemas para ver se te vais embora. Muitas das vezes, procuramos biscates para fazer, mas há sempre alguém que diz: ‘não lhe dê trabalho ele é repatriado, um criminoso'. Não nos dão oportunidades. Depois a polícia está sempre a revistar-nos, o que é contra a lei. Se somos cidadãos normais, porque é que está constantemente a obrigar-nos a mostrar os bolsos, às vezes quatro vezes ao dia. Quem é que consegue viver assim?", questiona um repatriado.
A nossa fonte vai mais longe, contando um episódio insólito. "Um repatriado tinha um braço engessado e um polícia cortou-lhe o gesso para verificar se ele tinha droga debaixo do gesso. Quando o meu amigo chegou ao hospital o médico disse-lhe que era ilegal o que a autoridade policial tinha feito, pois a única pessoa que poderia cortar o gesso era o médico. Isto não pára por aqui. Quantas vezes nos agarram e batem-nos na Esquadra sem mais nem menos. Por termos cometido um crime na América não quer dizer que continuamos aqui à margem da lei. Já estamos a pagar bem caro por estarmos num sítio que não queremos", refere.
Porém, há repatriados que acusam a Câmara Municipal de não os ajudar. "Não há apoio. Deveria haver um gabinete psicológico para nos acompanhar logo que chegamos. Mas não há. O que há são promessas e mais promessas na altura da campanha eleitoral. Vivo na Brava há mais de 15 anos, tenho 3 filhos comigo. Por mais incrível que pareça não tenho um trabalho fixo. Só nos fecham as portas, porque olham para nós como um bando de marginais que invadiu a sua terra".
Por outro lado, muitos bravenses afirmam que o governo esqueceu-se desta ilha, importando-se apenas com a Praia, Sal, Boavista e S. Vicente.
D. Claudina trabalha já alguns anos num dos restaurantes locais da Vila. Como a maioria dos habitantes, também ela tem família nos Estados Unidos. Mas desta vez, preferiu enviar a filha para estudar em Portugal. "O que me choca é que em algumas zonas do interior as crianças não sabem escrever, ler, muito menos soletrar o alfabeto. Os pais acham que o melhor para elas é trabalharem ao seu lado no campo, pois é uma maneira de garantir mais comida no prato. Depois, há outra situação: os miúdos só pensam na América. Cerca de 30 por cento dos estudantes só deseja ter uma oportunidade de ir para os Estados Unidos e nunca mais voltar. Nas outras ilhas, os jovens emigram para ganhar dinheiro para depois voltar e investir na sua terra: na Brava não. Não há nada aqui para eles. Eu prefiro que a minha filha esteja longe, mas a ter uns bons estudos, de modo a conseguir um bom trabalho, do que estar numa ilha que está fora do contexto nacional de Cabo Verde", salienta.
Quando o relógio bate as 18h00, Vila Nova de Sintra está vazia. Somente alguns focos de grupos de jovens à porta de bares, ou em sítios habituais de encontro. Se durante o dia já parece que se está numa cidade fantasma, à noite "ka ten nada pa fazi". "Falta criatividade aos mais novos. Iniciativas, criar associações para promover o convívio. Eles só querem ficar na rua sem fazer nada. No meu tempo éramos nós que íamos atrás do trabalho e não o contrário", defende um idoso.
Na área da saúde os bravenses também não escondem a sua insatisfação. "Temos um único centro com dois médicos, para uma população de 7 mil pessoas. Um dos doutores ainda está em fase de estágio, o outro é muito bom. Eu rezo para não adoecer, pois se isso acontecer temos que ser transportados para o Fogo. Tudo se passa lá. É como se a Brava dependesse, eternamente, da ilha do Fogo. Agora, esta epidemia da dengue não sei como vai ser. Se ataca de uma forma séria a Brava vamos ter graves problemas", esclarece um dos moradores de Nossa Senhora do Monte, uma das localidades do interior.
Furna, Ansião, Fajã D' Água e Sorno. Regiões que miram todos os dias os mares profundos de um azul sem igual, mas que não fogem ao isolamento que se sente cada dia que se passa na Brava.
"Isto está mesmo muito mal"
Mimi mora na Praia há oito anos. Há já quase uma década deixou a sua Brava no pensamento, nas recordações, nas memórias da infância. Naquela tarde, encontrámo-la na Praça Eugénio Tavares. De volta à sua terra natal só por alguns dias, Mimi encontrou uma ilha ainda mais parada. "Isto está mesmo muito mal. Não há evolução. Deixei o interior à procura de melhores condições. No entanto, não hesitaria a voltar, caso houvesse algumas mudanças. Mas pelo que vejo, a Brava vai continuar assim, perdida no tempo, longe do século XXI", relata esta jovem mulher de 25 anos.
Na Furna, que abriga o cais onde diariamente chega o tal "barco de pesca", que traz os turistas, os filhos da terra, os visitantes por alguns dias, o sentimento é o mesmo. Espera-se pelo aeroporto que parece não estar na agenda governamental. Espera-se por melhores meios de transporte. Espera-se por não se estar aquém do mundo. Mesmo os pescadores daquele lugar reclamam falta de condições. "Não há ninguém. Agora temos barco todos os dias. Mas às vezes só vem uma ou duas pessoas. Aqui é sempre a mesma rotina, todas as horas, todos os minutos, todos os segundos. Os dias são sempre iguais. Mas, há quem se esqueça que nós também somos filhos de Cabo Verde", lamenta.
Assim se vai levando a vida na "ilha das flores". Os ponteiros do relógio parecem que não andam ao sabor da nova era. E quem mais sofre são aqueles que lutam pela sua terra, que simplesmente querem só mais e melhor. Porque mais do mesmo já estão eles cansados.
Fonte: Expresso das Ilhas
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